OPINIÃO: ”ALGUMA COISA PODRE” CHEIRA BEM DEMAIS

Não é sempre que um título da Broadway chega ao Brasil sem ser associado a alguma propriedade intelectual já popularizada de alguma forma, então a seleção de ‘’Alguma Coisa Podre!’’ (“Something Rotten!”), co-produção da Touché Entretenimento e Barho Produções, é, no mínimo, pitoresca, e a execução nos palcos do Teatro Porto de sexta a domingo acaba sendo totalmente demais.

A obra, que possui trilha dos Irmãos Kirkpatrick, também responsáveis pelo libreto em conjunto de John O’Farrell, explora de forma intensamente cômica a vida de Nick do Rêgo Soutto (Marcos Veras), um dramaturgo do período elisabetano (também conhecido como ‘’renascença inglesa”), que é completamente ofuscado por William Shakespeare (George Sauma). Por isso, ele recorre ao vidente Nostradamus (Wendell Bendelack) para saber qual será o grande sucesso dos palcos no futuro, o qual lhe é revelado ser o teatro musical. Com esse pano de fundo extenso e a capacidade de não ter nem o céu como o limite, o musical ganha o espectador pela barriga – graças ao riso fácil.

O humor da obra vem direto de outros grandes hits dos palcos de Nova York, especialmente ‘’Os Produtores’’ (de Mel Brooks) e ‘’Spamalot’’ (de Monty Python), e o nome do protagonista não é um mero acaso, lá ele se chamava ‘’bottom’’, aqui é o ‘’rêgo soutto’’. Se você pegou o trocadilho, entenda que eles estão presentes durante toda a duração do musical. Não só em forma de diálogo, mas também visualmente, visto que os belos figurinos de Fábio Namatame, por exemplo, recriam as próteses posicionadas na parte frontal do corpo dos homens como uma visível forma de produzir humor a partir do inuendo sexual.

É compreendendo onde se encaixa essa graça que o diretor Gustavo Barchilon, que também assina a versão brasileira do libreto, consegue criar uma obra consideravelmente exagerada, mas indispensavelmente consciente de onde habita. E, além desse humor, existe o entendimento das dezenas de referências a, basicamente, todos os musicais do mundo (feitos até 2015, data da obra, então não temos ‘’Hamilton’’ ou ‘’Waitress’’ aqui), mas como nem todos eles foram montados no Brasil, os mais obscuros acabam, de forma esperta, sublimados, e deixando os títulos mais populares serem o motivo da comédia que o público nota e se diverte.

Foto: Caio Gallucci

E quando falamos de não conhecer limites, é perceber que essas duas bases, o humor dúbio e as referências musicais, são fundidas nas versões de Cláudio Botelho, que transforma ‘’God, I Hate Shakespeare’’ em uma frase que, digamos, não podemos digitar. Todo esse aparato ganha vida, e gargalhadas, graças a um elenco comprometido com essa trama. Marcos Veras assume a árdua tarefa de ser protagonista em um musical com um charme próprio, Laila Garin é impagável quando se faz passar por homem devido ao machismo da época, é quase impossível não amar quando Wendell Bendelack faz o grande número da noite (’É um Musical’’), e a química adorável e apaixonante de Bel Lima e Léo Bahia fornecem o centro emocional que uma obra cômica tanto pede.

Se o sempre confiável Rodrigo Miallaret não rouba totalmente o show fazendo o papel de puritano é somente porque George Sauma é o melhor Shakespeare que o Brasil poderia ter. O personagem, que tem uma participação muito pontual, é feito como um grande astro do rock, e quem está acostumado com um Sauma mais contido, irá se surpreender com a facilidade com que o palco é dominado por ele, transformando o Bardo mais famoso do mundo uma espécie de Mick Jagger da renascença, demonstrando altíssimos tons de deboche e sex appeal. É uma atuação muito física, que demanda carisma para torcermos por seu personagem, e revela dons do ator que nem todos sabiam. Seu sapateado no final do primeiro ato é um deleite, e a forma como ele conduz a abertura do segundo com ‘’Cruel’’, é um total prazer.

‘’Alguma Coisa Podre!’’ é uma comédia com C maiúsculo, sem medo de ser feliz, e que evita se esconder em algo que não é. Se engana quem acha que precisa entender de teatro musical para apreciar a obra, ela chega aqui bastante universal. A reta final do segundo ato, desde a Broadway, parece meio corrida, mas a única coisa realmente triste é saber que a peça ficará tão pouco nos palcos da cidade, visto que deveria muito bem ser uma gargalhada de longa duração.

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