por Lucas Sant’Anna
Apenas 13% dos atores, cantores e bailarinos que subiram aos palcos em mais de 100 produções de musicais de grande, médio e pequeno porte são negros ou pardos. Dado assusta diante do Brasil, um dos países mais negros fora da África.

Após ver o relato do ator, cantor e músico Danilo De Moura sobre a branquitude presente no teatro musical brasileiro, fiquei intrigado e realizei um estudo sobre os elencos de teatro musical – que levantei nos últimos meses por meio de registros oficiais na internet fornecidos por produtoras e em programas de luxo/playbill sobre a arte do negro no teatro musical brasileiro. O que encontrei é uma realidade complexa da qual percebemos, sentimos, mas muitas vezes deixamos para trás – e, em alguns casos, ela passa despercebida.
Antes de entrarmos no tema sobre o racismo no teatro musical brasileiro, lhe convido para uma breve passagem por nossa história. Tudo inicia na escola, onde as nossas crianças aprendem um descobrimento que na verdade foi um genocídio: as estatísticas mostram que as populações indígenas das costas pereceram em quase 93% com a chegada dos portugueses. O Brasil foi o último a realizar a abolição da escravidão, mesmo tendo recebido quase metade dos dez milhões de africanos que desembarcaram na América; 4,8 milhões de escravos chegaram ao Brasil segundo dados apresentados no livro das pesquisadoras Lilia Schwarcz e Heloisa Starling: “Brasil: Uma Biografia”. A informação também está presente no livro de Abdias Nascimento, “O Genocídio do Negro Brasileiro”.
Nossa história ainda conta com a romantização de uma princesa que dá a liberdade para alguém que já deveria ser livre. A lei áurea ou Lei Imperial número 3.353 é extremamente conservadora, trata-se de um presente que o estado monárquico deixou para os fazendeiros – que não precisaram indenizar ninguém. Essa lei não previa ou garantia nenhuma forma de inclusão, trabalho ou educação aos povos negros.

Ainda se faz necessário salientar que 75% dos mais pobres são negros e que 56,1% da população brasileira é negra, segundo os últimos dados do IBGE. O Brasil é o sétimo país mais desigual do mundo segundo o relatório de 2019 do Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento (Pnud) e, na Pandemia do Coronavírus, a taxa de letalidade entre negros é de 54,8%; entre os brancos é de 37,9% segundo a pesquisa realizada pelo NOIS (Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde) e pela PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro).
Para o agravamento desses dados, ainda contamos com uma sociedade que vive o mito da democracia racial, o mito da pacificação e da harmonia. Essa teoria foi derrubada há anos, quando Florestan Fernandes, solicitado pela Organização das Nações Unidas (ONU), realiza uma pesquisa na qual comprova que o brasileiro tem o preconceito retroativo (que é o preconceito de sentir preconceito). Aliás, todo mundo não é racista, mas conhece uma pessoa que é. Pois é, essa conta não fecha. Como já dizia o nosso amável musical, Avenida Q:
”Todo mundo é meio racista, é sim!
E pode colocar você na lista também,
Quando a gente admitir que somos escrotos e não fingir,
quem sabe a gente aprende a se aceitar
e fazer o mundo, melhorar…”

Embora os dados do último censo revelem que os negros são a superioridade no número de habitantes no país e maioria no ensino superior público, eles ainda são minoria nas posições de liderança no mercado de trabalho e nas representações políticas. E quando entramos no mundo do entretenimento, da arte, essa representatividade cai por terra, eles não estão no palco e nem na plateia. Os negros não são protagonistas de novelas, de teatro ou de filmes e, também sofrem com uma publicidade que continua reforçando os estereótipos do que é belo e confiável.
Teatro Musical Brasileiro e o racismo
Diante dos dados apresentados acima, algo em que a pesquisa me chamou a atenção: por que a arte que tanto amamos, os musicais, são uma forma de manutenção da hierarquia racial? Foram analisadas mais de 100 produções de musicais em cartaz no eixo São Paulo e Rio de Janeiro. Ao todo, essas peças empregaram 2244 artistas, sendo eles: atores, cantores e bailarinos. Contudo, apenas 307 dos profissionais que subiram aos palcos eram negros ou pardos – isso representa apenas 13%. E o número de protagonista é ainda menor, das 101 produções analisadas, apenas 14 delas tiveram homens ou mulheres negras ou pardas a frente do espetáculo.
Esse levantamento deixa claro o racismo velado por trás dos elencos das produções. Geralmente, são os brancos que assumem todos os personagens. Não há diversidade, não há colorismo. Nos grandes teatros que abrigam os grandes musicais, até mesmo os seguranças, recepcionistas e profissionais das lojinhas, são geralmente brancos. Entretanto, há uma mudança radical quando olhamos para os técnicos, pessoas da limpeza e profissionais terceirizados. Sim, eles são na maioria negros e tratados como invisíveis, ficando sempre nos bastidores, por trás das cortinas.

As plateias do teatro musical muitas vezes são assustadoras. Infelizmente, a arte não é valorizada em nosso país; os negros vivem às margens da sociedade, as produções têm um alto custo para serem realizadas e os ingresso não são acessíveis. Além disso, vale salientar que as sessões populares não atendem um trabalhador, pai ou mãe de família, pois a maioria delas é realizada às quartas ou quintas no período da tarde. Quem tem esse horário livre? São os pobres? Aposto que não.
A ausência de negros nas produções é evidente. Os meus olhos saltam para a naturalização do racismo no Brasil e as consequência nefastas da discriminação e do preconceito para com a população negra. O povo negro era e é tratado como uma máquina que pode ser depreciada e descartada o mais rápido possível.
Por fim, é necessário mudar uma estrutura conformada e medicada. A arte deve ser um lugar de todos, todas e todes. A arte deve curar e transformar. Sendo assim, peço que os produtores de elenco apliquem o termo diversidade na escolha de artistas. Não é possível que até mesmo na arte, escutemos que não existe mão de obra qualificada para os personagens, sabemos que isso é MENTIRA! Por que em um país onde 54,8% são negros não podemos ter uma Glinda negra, um Fantasma negro, um Peter Pan negro? Qual o motivo? A representatividade muda a vida de toda uma sociedade, brilha os olhos de uma criança e transforma um padrão triste e racista.
Em entrevista ao Jornal The New York Times, Norm Lewis, o primeiro Fantasma negro a assumir o papel contou que “Muitos jovens me viram como uma inspiração, e eu não sabia disso até recentemente – eu era apenas um cara conseguindo um emprego”, e acrescentou que muitos jovens negros vinham até ele chorando e dizendo, “Você é a razão pela qual estou cantando”.

”As histórias importam. Muitas histórias importam. As histórias foram usadas para espoliar e caluniar, mas também podem ser usadas para empoderar e humanizar. Elas podem despedaçar a dignidade de um povo, mas também podem reparar essa dignidade despedaçada.” (Chimamanda Ngozi Adichie, “O Perigo de uma história única”). Que possamos rever esse filtro, que de alguma maneira tenhamos a chance de trazer por meio da arte do teatro musical, várias histórias com diferentes personagens. Que a história dos musicais não seja branca e alienada diante do racismo estrutural brasileiro que mata, fere e diz o que você pode ou não ser.
VIDAS NEGRAS IMPORTAM!
Muito obrigado pelo espaço Mundo dos Musicais ❤️