Opinião: ”Wicked” é uma obra sobre abraçar o diferente, e a nova montagem brasileira acerta na proposta.

2023 marca o aniversário de duas décadas de ‘’Wicked’’, e o musical de Stephen Schwartz segue intocável nos palcos da Broadway. Felizmente, como teatro é uma arte em movimento, a obra ganhou no Brasil uma nova versão, demonstrando que a essência da magia deve permanecer a mesma, mas o feitiço para ela ocorrer pode – e deve! – ser diferente. E não são apenas retoques, a nova montagem, assinada por John Stefaniuk, e produzida pelo Atelier de Cultura, é uma completa reinvenção visual daquela que estamos acostumados.

É fácil comprar o musical por aquilo que ele tem de melhor: uma trilha que gruda no ouvido, e duas protagonistas cativantes. A grande questão é como recriar cenicamente uma peça tão marcada em seu conceito imagético. A paleta de ‘’Wicked’’ é, originalmente, criada na base da dicotomia, para que possamos entender que Elphaba e Galinda são seres distintos mas com a mesma força dominante. Aqui, Morgan Large (figurino e cenário) decide expandir essa visão e o ‘’Wicked’’ de 2023 abraça, com muito mais força do que antes, um leque de cores mais abrangente e uma variação de escala flutuante.

Uma escolha cenográfica que vem inundando o teatro musical ao redor do mundo é a utilização do telão de led para substituir cenários. Aqui, à primeira vista, pode até parecer o que ocorre, mas o gigante painel que ocupa hoje o palco do Teatro Santander mais serve como finalização de algo construído fisicamente do que a substituição total da coisa. O pior que uma projeção pode ser é genérica, algo que poderia ser encontrado na tela de fundo de um Windows 95, mas, aqui, como um todo, elas visam uma identidade própria, buscando não diminuir a individualidade da obra. O background escolhido para a sala de aula das protagonistas, por exemplo, denota uma profundidade muito pertinente à Universidade de Shiz, e ajuda a dimensionar positivamente o palco utilizado para a montagem.

Foto: João Caldas

E é nesse viés que acredito que Stefaniuk e seu time técnico acertam mais na montagem, na compreensão da espetacularização que complementa a trilha de Schwartz e enriquece a jornada de suas personagens. Seja um armário de sapatos belamente desenhado que desce do teto, a transformação de Boq ou a adição de um ornamento gigante que abrilhanta ‘’Todo Bem Tem Seu Preço’’, quanto maior esse ‘’Wicked’’ fica, melhor ele se torna. É a subversão do que Coco Chanel uma vez disse, aqui mais é mais sim. 

Tudo isso é sintetizado no final do primeiro ato, quando Elphaba canta ‘’Desafiar a Gravidade’’, e por um momento você sente o furor único da força que o teatro musical é capaz de causar. Tentar transformar a experiência em palavras é lutar em uma batalha perdida. A escolha cênica desse voo específico, junto a uma canção tão irretocável, lindissimamente versionada por Mariana Elisabetsky e Victor Mühlethaler, e com a força de uma intérprete como Myra Ruiz resulta em uma resposta catártica que só mesmo vivendo para entender.

Porém, para além de toda grandiosidade ou parafernália em exibição, e tal qual a mensagem do próprio show, isso pouco valeria se nós não nos importássemos com o que está acontecendo no palco. E sim, o texto de ‘’Wicked’’ não é infalível, o segundo ato demora a engrenar e, por muitas vezes, o discurso sobre o populismo e o ódio às diferenças pode parecer muito óbvio, mas é permeando essa obviedade, que parece saída de uma versão mais light de ‘’Revolução dos Bichos’’, que a obra consegue chegar a tanta gente. Ou amar uma protagonista que é odiada pela cor de sua pele não é um ato revolucionário? E ter como defensoras das protagonistas ninguém menos que Myra Ruiz (Elphaba) e Fabi Bang (Glinda) se torna uma espécie de presente. As atrizes voltam aos papéis que fizeram pela última vez em 2016, e os defendem com fibra, carisma e muita voz, mas acima de tudo, com uma pungente verdade. 

Foto: João Caldas

A Elphaba de Myra Ruiz possui um arco tão bem definido, e nisso a caracterização feita por Large é essencial, já que é impossível não ver aquela menina tão sisuda se desabrochar em uma confiante mulher. Ruiz, que fez uma Eva Perón inatacável na última montagem do Atelier de Cultura, utiliza toda a sua garganta de ferro para encantar o público em performances de altíssimo nível, destaque maior para ‘’Todo Bem tem seu Preço’’, onde a atriz evoca malabares vocais de primeira linha para que possamos entender o ponto final de sua personagem. A sua Elphaba tem algo que não se vê sempre, que é um ar mais feliz, uma capacidade de brincar, de se soltar aos poucos, que ajuda muito na compreensão de tudo que ela passou. A bem da verdade, a Elphaba que surge em meio a fumaça no começo do segundo ato, muda até de corpo, nos revelando que ela não possui medo algum do que estar por vir. E essa jornada tão bem delineada entre voz e corpo que torna definitiva a Elphaba de Myra, centralizando nela o foco emocional da peça.

Fabi Bang como Glinda é o maior exemplo de uma atriz em plena compreensão da força que a comédia física representa para os palcos. Ela é certeira em capitalizar a superficialidade inicial de Glinda a seu favor, fazendo com que a plateia a ame enquanto está em cena, chamando atenção até mesmo sem querer. Em cena, Bang não só não perde uma piada sequer, mas cria espaços para o riso quando não parecia existir nenhuma chance de algo engraçado naquele momento. Seu trabalho lírico é belíssimo, e ‘’Popular’’ é, sem dúvidas, um dos pontos altos da peça. Um número que sintetiza o tempo cômico irrefutável da atriz, mostra as verdades que permeiam a personagem naquele instante, e faz com que seja mágica a experiência de vê-la nesse papel. 

É também a clara química entre as atrizes que torna tudo tão fácil. Uma amizade tão transparente que quando ambas cantam ‘’Tudo Mudou’’ é quase como se pudéssemos ver uma mistura em cena de Elphaba e Glinda com Myra e Fabi. Dito isso, ‘’Wicked’’ tem uma gama de atores em papéis coadjuvantes entregando interpretações bem pessoais de personagens já vastamente conhecidos, as vozes de Tiago Barbosa (Fiyero) e Nayara Venancio (Nessa) são imaculadas, já a comédia tanto de Marcelo Médici (Mágico) quanto de Dante Paccola (Boq) é impagável. A bem da verdade, até a escolha de colocar Renan Rosiq como a marionete do Mágico demonstra o tamanho talento desse elenco, visto que o ator faz um trabalho incrível sem falar uma palavra sequer. Mas é, no entanto, de Diva Menner o destaque dentre os papéis coadjuvantes. A atriz, que primeiro aparece dos pés a cabeça em tons de fúcsia escuro, cria uma Madame Morrible quase reptiliana, em seu corpo é visível uma cobra, e a sua voz soa realmente como um sibilo aos ouvidos do povo de Oz. A cena em que seu rosto se multiplica em pequenas telas é uma das melhores sacadas da direção, que evoca um aviso gutural da opressão fascista que a obra tanto fala.

Foto: João Caldas

Nenhuma obra é perfeita, e isso inclui a montagem original de ‘’Wicked’’, pois a perfeição na arte pode até ser um desejo, mas nunca se tornará realidade, e em alguns pontos aqui existe o espaço para uma imagem mais personalizada no telão, um pouco mais de dança aqui e ali, mas no fim, o ‘’Wicked’’ brasileiro discute tematicamente sobre abraçar o diferente, e aqui esse ‘’estranhamento’’ inicial acaba se tornando um encantamento real, e a bruxaria feita se revela tão boa e pura, e eu sinto que tudo (ok, quase tudo) mudou em mim.

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