Opinião: ”Evita Open Air” apresenta o apogeu de Myra Ruiz

Logo no início da canção Buenos Aires, Eva Duarte responde que ela é a novidade que vai abalar a capital argentina, ela chega até a falar em star quality, aquele termo americano muito utilizado para descrever quem tem o fator X. E, honestamente? Ela não estava mentindo. É esse fator também que precisa estar em cena para que Evita, o musical de Andrew Lloyd Webber e Tim Rice, se concretize nos palcos com a mesma dinamicidade que a futura primeira dama arrebatou seu país, e o mundo.

A verdade é que o próprio arrebatamento do musical, lançado na Broadway no último ano da década de 70 é totalmente ligado a uma mudança social que, de acordo com Andy Warhol, iria fazer com que a adoração da população sobre alguém iria se tornar cada vez mais intensa. E quem mais interessante do que uma figura que veio do nada e se tornou uma sensação internacional? Junte isso a duas performances que transformaram a carreira de seus atores, Patti LuPone no papel título, e Mandy Patinkin com seu Che, e o prato estava feito, e transbordando.

Foto: Victor Miranda

A trilha dessa obra é um trabalho hercúleo para qualquer vocalista do mundo, dado a dimensão desumana com que Lloyd Webber constrói sua melodia, solicitando do vocalista um forte trabalho de belting, e a modulação entre notas altas e baixas. Fora, claro, o fato da protagonista estar no palco por quase todo o espetáculo. Para sorte do público brasileiro, que pode presenciar a super produção do Atelier de Cultura pelas próximas semanas, nós temos uma jovem gigante escalando, ao ar livre, essa montanha que chamamos de Evita. O desempenho de Myra Ruiz no papel título soa quase como seu apogeu artístico, o que é ridículo de se falar sobre uma pessoa tão jovem, mas é necessário pontuar, tamanha é a performance que ela está entregando no Parque Villa-Lobos.

Por se tratar de um musical, basicamente, sem diálogos, a construção de Myra é calcada em como seu corpo e rosto se comportam em cena. Além, claro, da capacidade que ela tem de transformar as notas musicais em parte de sua personagem. A impostação do corpo da atriz é muito bem construída para dar noção do arco da personagem. Existe um espaço e leveza na Eva do começo do musical, que vai ganhando restrição a medida que a personagem ganha fama e poder. Essa pose, bem política, traz o contraponto de um rosto que transmite uma forte humanidade, e isso é ainda melhor acentuado na voz de Ruiz. Se a atriz canta (as belíssimas versões de Victor Mühlethaler) num tom que parece o máximo de sua potência vocal, é porque em um dado momento, Evita já não pede, ela demanda. E nesse campo de batalha desumano desenhado por Andrew Lloyd Weber, Myra sai muito além de vitoriosa, ela se sagra uma super-heroína.

O trabalho no segundo ato é esplêndido, começando com uma devotada interpretação de Não Chore Por Mim, Argentina, e culminando na sublime rendição de O Seu Amor. É até engraçado que Evita cante sobre a possível perda de afeição, e em sua última frase repetindo isso, a atriz que está sendo levada para fora do palco, olhe para a plateia claramente emocionada. Existe uma clara preocupação em mostra que Eva tinha uma preocupação com o povo, mas é também fácil de perceber que ela tinha igual preocupação com sua imagem. Mas o que é um ser político se não a fachada que ele apresenta? E como a própria proclama: ”se eles querem me adorar, que eu esteja vestindo Christian Dior”. Esse número, Arco-Íris, é o melhor momento da produção. Traz um senso de opulência digno de Eva, assim como boa parte de suas intenções como personagens. E o momento com os tecidos… mágico, sem mais.

Foto: Victor Miranda

Preciso afirmar que os pontos positivos da produção não pertencem somente à sua protagonista. Existe um claro senso de esmero que transborda por toda a peça. Na verdade, esse trabalho é uma experiência singular desde quando você chega ao local da apresentação, com uma estrutura deslumbrante, e que ao visualizar o desbunde cênico que é o palco da peça, cai um pouco da ficha do que você estará prestes a presenciar. John Stefaniuk entende que o musical fala sobre uma peça que se tornou a obsessão de muitos, e é a opulência bem direcionada do espetáculo que transforma o resultado final de sua obra. Evita nos tempos atuais teria milhões de seguidores em suas redes sociais, seria um objeto de desejo de todos, e é essa visão que dá sustento a Myra Ruiz em cena. Seja uma enorme bandeira argentina cobrindo o chão do palco, ou os andaimes que trazem uma visão abstrata do reino que a Primeira Dama construiu. Tudo ali serve para sublinhar a importância de Eva.

Essa abstração se ramifica, por exemplo, na presença de uma dama de vermelho, belamente incorporada por Fernanda Muniz, que oras é o corpo de Eva quando a mesma está seduzindo Perón, e em outras parece ser a própria libido da personagem transmutada em outro corpo, um artifício realmente bem empregado. O brilho no elenco vai além, afinal a fisicalidade que Fernando Marianno imprime em seu Che demonstra um vigor e garra essencial para que o narrador da peça se conecte com a plateia. Explorando cada centímetro do gigante palco, Marianno está sempre se movimentando, e sendo ácido, como esse subconsciente da própria Eva, que atinge seu clímax em E o Dinheiro Só Faz Girar, onde ele executa com muito profissionalismo um número altamente enérgico. Número esse que exemplifica muito bem a força do balé, construído com clara inspiração no tango argentino, mas não só nele. E temos que admitir, não é tarefa fácil para um coro empenhado, ter que percorrer todo o palco, mas até nisso a direção soube se localizar bem, sempre ocupando com precisão o espaço físico apresentado.

Foto: Victor Miranda

Cleto Baccic, em um personagem bem diferente dos seus anteriores, fica mais alocado no fim da peça, seu Perón precisa lidar com a degradação de Evita, o que faz com que ele possa exercitar com mais intensidade tanto sua atuação, quanto seu trabalho vocal, colocado especialmente em Ela é um Diamante. A verdade é que a peça é tão bem cuidada, que até participações pontuais como Felipe de Assis como Magaldi e Verônica Goeldi como a Amante chamam atenção em seus números solos. Assis e Goeldi revelam vocais precisos para a trilha em questão, demonstrando um profundo charme para ele, e uma tristeza iminente para ela.

A primeira cena, menos concreta, pode confundir um pouco o espectador, mas uma vez que isso se estabelece, e os flashbacks acontecem, é quase como uma viagem tomando conta de você. Que isso aconteça num espaço aberto, seja a tarde ou a noite, traz um ar de místico a obra, assim como também se torna um reflexo bem fiel do que foi, e ainda é, a presença de Evita para todos nós.

One comment


  1. Que texto, meldels!!!!! Bem escrito, argumentado, que deleite!!!!! Tao diferente das.opinioes rasas e curtas que passaram a dominar as.midias sociais 🙃🙃
    Evita Open Air eh uma obra irretocavel mesmo, vi uma vez e verei de novo!

Deixe uma resposta